A escalada anti-Rússia<br>repete as campanhas anti-soviéticas

Miguel Urbano Rodrigues
Cadeias de televisão internacionais transmitiram com frequência nas últimas semanas um documentário francês sobre o assassínio da jornalista Anna Politovskaia. O crime ocorreu em 2006. O tema é retomado no momento em que os media dos EUA e da União Europeia desenvolvem uma intensa campanha contra a Rússia, responsabilizando a pátria de Pushkin por uma politica exterior agressiva que reactualiza «a guerra fria».
Na aparência, o objectivo da iniciativa é humanista. Anna é apresentada como uma mulher maravilhosa, um ser excepcional pela bondade, abnegada, talentosa. O marido, o filho, os colegas do jornal onde trabalhava, amigos que a conheceram aparecem no filme. Todos os que conviveram com Anna esboçam dela o perfil de uma defensora dos oprimidos, uma intelectual revoltada contra a violência, a injustiça e a miséria, uma lutadora que fazia da defesa da liberdade e da democracia um fim existencial.
Não tive a oportunidade de ler qualquer artigo da Politovskaia. Respeito a sua coragem como jornalista e lamento muito que tenha sido assassinada precisamente por ser uma voz incómoda.
Mas o próprio filme, ao projectá-la como heroína, atribui-lhe afirmações que deixam transparecer traços de megalomania. A Politovskaia sentia-se culpada por não ter conseguido evitar a guerra da Chechénia. E lamenta não ter podido imprimir outro rumo a acontecimentos da história do seu país por ela acompanhados como jornalista e cidadã.
A angústia que revela é inseparável de uma ambição excessiva, quase sobre-humana.
Entretanto, os que viram o filme – transmitido em Portugal pela SIC Notícias em horário de máxima audiência – puderam verificar que, paradoxalmente, Anna, não obstante os méritos e a personalidade que, segundo o realizador, fazem dela uma heroína, não é ,afinal, o objectivo do documentário.
O discurso sobre a Politovskaia e a mensagem que ela transmite têm por função projectar uma imagem terrível da Rússia actual, uma terra de horrores. A memória dos telespectadores é, alias, encaminhada para a União Soviética, tal como a viam no Ocidente, empurrando-os para uma inevitável associação de ideias, para paralelos.
Vladimir Putin surge no pequeno écran em imagens breves mas impressivas. O suficiente para que o cidadão comum dos EUA e da Europa identifique no dirigente russo um ditador cruel, implacável, o primeiro responsável pela sociedade trágica cuja podridão é denunciada por Anna.
Cabe perguntar por quê este súbito fascínio por um documentário quase esquecido? Por que apresentar a Rússia de Putin como o «Império do Mal» ressuscitado?
A veemência dessa campanha surpreendeu. A Rússia é hoje um país capitalista. No inicio do seu segundo mandato, o Presidente George W. Bush ainda derramava elogios sobre Putin, identificando no seu colega russo um estadista responsável, quase um aliado.
A reviravolta tem uma explicação lógica. O discurso de Munique, hoje famoso, em que Putin, rompendo a oratória da troca de amabilidades, denunciou a política de dominação mundial imposta pelos EUA alarmou Washington. Assinalou o fim de um época. Posteriormente, a invasão da Ossétia do Sul pela Geórgia – agressão incentivada pela Casa Branca – motivou uma resposta militar russa que surpreendeu os EUA, mergulhados numa crise financeira gravíssima.
As Forças Armadas russas intervieram, expulsaram os invasores e infligiram-lhes dura punição. Mais, Moscovo reconheceu como estados soberanos as pequenas republicas da Ossétia do Sul e da Abkhazia, que há muito haviam proclamado a independência.
A Rússia agiu em defesa dos seus interesses nacionais. O governo de Moscovo decidiu que tinha chegado o momento de assumir uma posição de firmeza perante a estratégia de expansão para Leste do imperialismo dos EUA.
O presidente Medvedev foi muito claro ao denunciar os objectivos da agressão à Ossetia do Sul, financiada e apoiada por Washington. Lembrou que ela coincidia com a iminente instalação na Polónia de mísseis norte-americanos (o chamado escudo anti-missil), e com as tentativas de alargamento da NATO à Ucrânia, à Geórgia e às três republicas bálticas.
A política de hostilidade real à Rússia, disfarçada por um relacionamento diplomático na aparência amistoso, tem sido uma prioridade das duas últimas administrações dos EUA. A construção de oleodutos para transporte até ao Mediterrâneo e ao Mar Negro do petróleo do Cáucaso e da Ásia Central sem passagem por território russo, e a instalação de uma grande base militar dos EUA no Kirguizistão (próxima da fronteira da China) foram interpretadas no Kremlin como marcos de uma estratégia de expansão imperial que configura uma ameaça real à segurança da Rússia.
A redescoberta do filme que, a pretexto de erigir Anna Politovskaia em heroína do combate pela democracia, esboça um retrato dantesco da Rússia actual, responde, afinal, à necessidade de mobilizar a opinião pública do Ocidente contra o único país com capacidade militar para conter a estratégia de dominação planetária dos EUA.
Não duvido que milhões de europeus que assistiram ao filme, tão habilmente mascarado de humanista, tenham aderido a mensagens que ele transmite e deturpam grosseiramente a história.
Quantos terão registado que o documentário é totalmente omisso sobre a época de Iéltsine? Poucos. Anna, no filme, nem sequer lhe cita o nome, não obstante o crime organizado, a corrupção e as máfias terem proliferado nos anos em que Boris Iéltsine destruiu as estruturas económicas do país, desmantelou as suas indústrias de ponta, e privatizou a agricultura, transformando a Rússia num pais do Terceiro Mundo.
Então as cadeias de televisão dos EUA e da União Europeia não produziam filmes criticando Iéltsine. Pelo contrario. Apresentavam-no como um cavaleiro da democracia, um defensor da liberdade. Washington financiou mesmo a sua reeleição.
O sistema de poder imperial está empenhado em apresentar a Rússia de hoje – em fase de acelerado crescimento económico – como uma sucursal terrena do inferno e na diabolização de Putin.
As emissoras de televisão limitam-se a cumprir o papel que lhes é distribuído.


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